Raça, gênero, classe. Em que medida esses elementos da identidade humana são determinantes no acesso a direitos e nas relações de privilégio e exclusão que definem o que chamamos desigualdade social? De que maneira a diversidade e autonomia dos povos deve ser considerada na promoção da cidadania desses grupos vulnerabilizados? E o que os operadores do direito, em especial os defensores e defensoras públicas, tem a ver com tudo isso?
Foi a partir dessas reflexões que se debruçaram os participantes do webinário promovido pela Associação das Defensoras e Defensores Públicos do Amazonas (Adepam) e pela Escola Superior da Defensoria Pública do Amazonas (Esudpam), que ocorreu nesta terça-feira (25) e abordou o tema da igualdade racial a partir de uma perspectiva histórica e “desconolizadora” dos direitos humanos.
Participaram do evento como palestrantes o advogado, professor de direito e doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo, Gabriel Mantelli, o defensor público do estado do Pará, Johny Giffoni, e a advogada e presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil no Amazonas (OAB-AM), Ana Carolina Amaral.
“Dentro dessa discussão sobre classe, nós vivemos no contexto mundial em que a construção do que é classe está necessariamente imbricada na construção do que é raça. As pessoas pobres são as pessoas negras, os trabalhadores, nos piores serviços, são as trabalhadoras negras, e, principalmente, as mulheres negras, daí a importância de se compreender a interseccionalidade (cruzamento) das opressões e criar mecanismo jurídicos para combatê-las”, defendeu o dr. Gabriel Mantelli.
O estudioso, que também é advogado da ONG de direitos humanos Conectas, abordou o tema “Descolonização”, um termo ainda pouco difundido entre os profissionais e estudantes do direito. “Aqui nos referimos a um conjunto de teorias e práticas que estão relacionadas aos processos de colonização de territórios, lugares, países, mas também de imaginários, das maneiras como a gente enxerga a realidade”, explica Mantelli.
Segundo Mantelli, tais reflexões ainda são pouco estudadas no campo jurídico e, portanto, é preciso aproximar o público de operadores do direito a fim de esmiuçar o tema.
“O campo do direito ainda não estuda profundamente o pós-colonialismo, a história das colonizações dos países, não estuda os teóricos do Sul do Globo. É preciso fazer com que esse conjunto de teorias e práticas possa nos fazer refletir sobre como a gente opera o direito, assim como ficar mais atentos aos sistemas de opressão e não reproduzi-los”, explicou ele, que defende o direito enquanto instrumento de emancipação social, antagonizando com o conceito e prática do direito como ferramenta de opressão pelas elites.
Defensor público do estado do Pará, Johny Giffoni, também abordou o tema decolonial na perspectiva do acesso a direitos por parte dos povos indígenas e quilombolas. Em sua palestra “Direito à Autodeterminação dos Povos Amazônicos”, defendeu uma prática jurídica que leve em consideração a diversidade dos diferentes grupos étnicos da região.
“Há a necessidade de compreender a existência de uma pluralidade de normas jurídicas que descendem das formas de organização culturais e principalmente, cosmológica desses povos. Que pra gente do direito é muito difícil entender que povo indígena, que não são indígenas, mas Sateré, Wapichana, Waimiri-Atroari. Cada povo forma uma organização social, cultural, cosmológica e jurídica”, afirmou.
“A descolonização é a gente deixar de pensar e agir de forma colonial. E o que seria isso? Deixar de pensar e agir guiados por um imaginário que classifica, que hierarquiza, que categoriza num tom inferior grupos que se diferenciam culturalmente, economicamente, religiosamente. É realizar um diálogo intercultural, mas mais do que isso, um diálogo da pluralidade jurídica dos povos. É deixar de ser o protagonista para ser um instrumento da auto-determinação desses povos”, diz ele, defendendo que é preciso “olhar essas múltiplas realidades e construir um direito a partir delas, e esse direito garantir o lugar de fala e a cidadania desses povos”.
Já a advogada e presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB, Carolina Amaral, abordou o tema “Raça e gênero: uma análise interseccional, tendo como ponto de partida as reflexões sobre a população negra, em especial as mulheres negras, vítimas da chamada “interseccionalidade” de opressões.
“O termo interseccionalidade surgiu nos movimentos feministas britânico e estadunidense nas décadas de 1970 e 1980, como fruto do desenvolvimento acadêmico, sociológico e epistemológico das mulheres negras”, explica Carolina em sua apresentação.
A advogada destaca ainda, citando a pensadora feminista Angela Davis, a pirâmide social é composta, no topo, por homens brancos, acima das mulheres brancas. Mais abaixo estão os homens negros e após as mulheres negras. “No entanto, se as mulheres negras se movimentam na base dessa pirâmide, toda a sociedade se movimenta junto”, diz ela.
Sobre o evento
O webinário que discutiu o direito decolonial promovido pela Adepam faz parte do calendário local da associação, que incorpora o tema da campanha da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), “Racismo se combate em todo lugar”.
Em ocasião do Dia do Defensor e da Defensora Pública, celebrado em 19 de maio, a associação deu início ao seminário virtual, que terá ainda um último dia, a próxima sexta-feira (28), uma roda de conversa sobre igualdade racial com as defensoras Elânia Cristina, Adriana Tenuta, o defensor José Silva, mediados pelo defensor Arthur Sant’Anna.