Sob ameaça, poder de requisitar documentos oficiais é prerrogativa essencial dos defensores públicos, diz associação de defensores

No Amazonas, DPE-AM ingressou contra a Prefeitura de Manaus por negar informações requisitadas sobre uso de cloroquina, em ação ganha na primeira instância; No STF, a discussão sobre a constitucionalidade da prerrogativa deve retornar a pauta até sexta-feira (12)

Em meados de 2020, em meio à fase aguda da pandemia de coronavírus no Amazonas, a Defensoria Pública do Amazonas (DPE-AM) requisitou do Município de Manaus que prestasse informações sobre o uso dos medicamentos cloroquina e hidroxicloroquina, como tratamento para covid19. Àquela altura, estudos científicos já começavam a demonstrar a ineficácia do remédio para o tratamento da doença. Sem obter resposta, o órgão ingressou com ação na Justiça do Amazonas, alegando descumprimento do chamado poder requisitório, isto é, a prerrogativa legal dos defensores de obter informações de órgãos públicos por meio de um ofício, sem a necessidade do ajuizamento de uma ação na justiça. Mais recentemente, o Município de Manaus recorreu da decisão, que segue para a segunda instância.

O caso no Amazonas lança luz sobre uma discussão que voltou à tônica recentemente, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar uma série de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas pelo Procurador-Geral da República (PGR) Augusto Aras questionando o poder requisitório da Defensoria Pública. A principal delas é a ADI 6852, que argumenta pela inconstitucionalidade da lei federal 80/1994, que prevê a prerrogativa nos âmbitos federal e estadual. Outras 21 ações buscam invalidar as normais estaduais que garantem aos defensores o instrumento do poder requisitório.

Apesar de ser um importante instrumento na atuação dos defensores, por propiciar uma atuação mais efetiva e célere do defensor público em benefício de seus assistidos, notadamente a parcela mais pobre da população, o poder requisitório, como pretende a PGR, deixaria de existir, somente sendo possível a obtenção de informações pela Defensoria por meio de simples requerimento, que poderia ser deferido ou não, a critério do órgão público questionado. Após pedido de vista do Ministro Edson Fachin, a expectativa é de que a ADI 6852 retorne ao plenário virtual da corte na próxima sexta-feira (12), retomando a discussão sobre a constitucionalidade da prerrogativa na Corte.

De acordo com o presidente da Associação das Defensoras e Defensores Públicos do Amazonas (Adepam), a mudança limitaria a atuação dos defensores, prejudicando o acesso à justiça porta dos mais vulneráveis.

“A prerrogativa da Defensoria de requisitar informações, ouso dizer, é o elo vital para a sobrevivência do acesso digno à justiça aos necessitados. Sem ela, toda e qualquer demanda extrajudicial tutelada por membro da Defensoria Pública passará por uma análise de discricionariedade do órgão público demandado, que poderá atender ou não a um requerimento no interesse do indivíduo ou da coletividade”, diz o defensor, que atualmente coordena o Núcleo de Defesa da Saúde e é autor da ação contra o Município de Manaus.

Coordenador do Núcleo de Defesa da Saúde e autor da ação contra o Município de Manaus, o presidente da Adepam Arlindo Neto defende que fim da prerrogativa poderia dificultar acesso à justiça dos mais pobres

“Conceber um cenário destes significa admitir enxurradas de ações perante o Poder Judiciário. A Defensoria perderia a relevante função de ombudsman da comunidade, que hoje capta e soluciona milhares de demandas diariamente, e passaria a ser uma verdadeira fábrica de judicializações. O impacto desta mudança no acesso à justiça repercutirá em todos os setores da sociedade. Inicialmente, por óbvio, sofrem os mais vulneráveis, mas, considerando o potencial de alavancar a quantidade de ações diariamente ajuizadas pela Defensoria (inclusive para fazer valer o acesso a informações de interesse público), teremos um Judiciário moroso e que precisará se voltar a resolver quantidades recordes de demandas”, prossegue Arlindo.

Junto com representantes das demais associações estaduais, em união de esforços com a Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), a Adepam tem acompanhado a questão de perto e desenvolvido um trabalho de articulação e em defesa da prerrogativa de requisitar informações do ente público.

Nesta semana, a Anadep postou em sua conta nas redes sociais Facebook e Instagram explicando a importância e dando exemplos de uso do poder de requisição da Defensoria Pública nos estados. Na postagem, cita uma ação da Defensoria Pública de Minas Gerais, que busca indenizar família vítimas de uma tragédia em uma creche. A publicação menciona também a inclusão de crianças e jovens em acolhimento social como beneficiáros do BPC (Benefício de Prestação Continuada), possível após ação da DPE-CE, assim como ação da DPE-RS que garantiu moradia para mais de 1,7 mil pessoas. Todas as ações tiveram medidas de poder requisitório que deram embasamento e celeridade aos processos.

Entenda a ação no Amazonas

A ação que tramita no Amazonas se originou do descumprimento por parte do município de Manaus ao Ofício nº 287/2020 DPE-AM/SAÚDE, encaminhado no dia 07 de maio de 2021, para ser respondido em 24 horas, formulando questionamentos acerca do uso dos medicamentos Cloroquina e Hidroxicloroquina nas unidades de saúde do município de Manaus para pacientes com Covid-19. Entre outros questionamentos realizados, o defensor público indaga sobre como foi feita à época a aquisição dos medicamentos disponibilizados no Hospital de Campanha Gilberto Novaes.

Diante negativa do secretário à época, senhor Marcelo Magaldi, em responder a um ofício da Defensoria Pública, foi ajuizada, perante a 4a Vara da Fazenda Pública, a ação de nº 0662781-23.2020.8.04.0001. Somente dois meses após o recebimento do ofício, o município prestou informações, em cumprimento a decisão liminar proferida pelo juiz Dr. Paulo Feitoza. De acordo com a resposta, o município de Manaus não faria a dispensação dos fármacos Cloroquina ou Hidroxicloroquina a pacientes com COVID-19, nas unidades de saúde geridas pela SEMSA/Manaus.

Após sentença favorável ao pleito da Defensoria Pública, o município recorreu. A ação encontra-se atualmente em 2a instância para julgamento da apelação.

Repercussão no Congresso

Congressistas da esquerda para a direita no espectro político se manifestaram contra a extinção do poder requisitório da Defensoria Pública. O senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que é professor de direito e delegado da Polícia Civil, pronunciou-se sobre o assunto em sua conta no Twitter. “O direito de acesso universal à Justiça é sagrado. O Procurador-Geral da República representa uma instituição cuja prerrogativa é defender a sociedade, mas faz exatamente o contrário ao golpear o trabalho da Defensoria Pública”, escreveu o senador, que apresentou no mês de outubro requerimento para inserção em ata do voto de louvor à Defensoria Publica.

O deputado federal Fábio Trad (PSD-MS), também no Twitter, se manifestou em “total apoio à Defensoria Pública brasileira que tem o direito e o dever institucional de requisitar documentos de órgãos públicos. Os pobres e os miseráveis que já estão osso, sem gás de cozinha e sem emprego agora sofrem outro golpe com esta hedionda iniciativa”, declarou.

Os deputados federais Léo de Brito (PT-AC) e Helder Salomão (PT-ES), também se manifestaram contra as ADINs ajuizadas pela PGR. “Quem perde mais uma vez são as pessoas mais pobres que necessitam do excelente trabalho das defensorias para ter acesso à justiça”, escreveu Léo de Brito, enquanto o colega de Câmara e de partido falou em “absurdo”, também no Twitter.

Entidades como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a Comissão Arns e a Conectas repudiaram as ações ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República.

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